Bate cabelo, festas bafônicas e fervos LGBT é um pouco mais comum vivencia-los hoje em dia em São Paulo, conhecida como a cidade que nunca dorme. Afinal de contas, a cultura da noite gay é uma realidade que não se discute. Sabemos que as diferentes formas de sexualidade sempre estiveram ai, mas nem sempre foi o que é hoje em dia. Nos acompanhe nessa viagem pela noite LGBT de São Paulo!
Há um tempo atrás ouvia-se sussurrar as existentes “boates para entendidos” ou “festa alternativa”. Um documentário maravilhoso que mostra a trajetória da noite LGBT paulistana é o São Paulo em Hi-Fi, de 2016, de Lufe Steffen. O Muita Brisa trouxe para você, com base nesse documentário, para o dia do orgulho esse percurso da noite LGBT paulistana, com muito glamour, brilho e cabeleira.
OS PRIMORDIOS – DE 1900 A 1950
Como muita gente não sabe, há 100 anos atrás já existiam gays varando as noites na cidade de São Paulo, mas não existiam baladas, bares e festas especificamente para esse público. Na época, os homossexuais frequentavam lugares básicos na qual todos iam, tudo junto e misturado.
Infelizmente a homofobia era algo recorrente. Os “pederastas” ou “frescos” eram julgados como figuras folclóricas e “marginais”, em quase todo momento estavam ligados a um tipo de “submundo”. Com isso, eles se aproximavam de prostitutas, gigolôs, michês, malandros e cafetinas.
Mesmo assim, existiam alguns lugares específicos que acabavam sendo parcialmente livre entre os homossexuais, como praças, parques e boulevares (Praça da República, Largo do Arouche, entre outros).
Lá era onde acontecia o famoso “footing”, onde a galera ficava andando pra lá e pra cá para ver se “pescavam” algum “lance”, namoro, transa, amizade, o que viesse. Sem celulares, whatsapp, facebook e tinder, era assim que as empoderadas da época conseguiam caçar.
ANOS 50/60: NA RUA A GENTE GRITA!
Os primeiros points gays em São Paulo começaram a surgir 50 anos depois. Na real, os points eram bares que não se identificavam como gays, porém a galera do gliter “invadia”. Eles passavam a dominar alguns bares, por alguma razão, e quando os donos (sempre héteros) se davam conta, os bares já eram um ponto “bicha”. Bares como Anjo Azul, todos localizados no centro, ficaram famosos pelo seu público.
Inagurada em 1964, na Av. São Luís, a nasceu como um grande centro gay, na qual está inteira até hoje! Muitos gays contaram que desde que o a Galeria estava sendo construída, a galera já ficavam planejando – “Quando esse lugar abrir, vai ser nosso!”. Dito e feito, eles dominaram tanto o lugar desde sua abertura, que ele ficou conhecido como “ponto de veados”.
Assim começava o desfile dos gays. Dentro da Galeria, a galera ficava subindo e descendo as escadas rolantes, desfilando e caçando. Bares que foram construídos dentro e ao redor do local, como Barroquinho, Leco e Paribar, foram logo tomados por esse público.
Outro ponto de caçada e paquera era o Cine Metrópole, que ficava dentro da Galeria. Recentemente, o cinema foi resgatado pelo empresário da The Week, André Almada, na qual fez festas LGBT lá. Porém, atualmente o cinema está lacrado
Entre os anos 50 e principalmente 60, os cinemas de rua do centro, como Art Palácio, Olido, Arouche, Windsor, Metro, Comodoro, Barão, Ipiranga e Marabá (que ainda está vivo, com 72 anos) eram grandes pontos do fervo gay paulistano.
Outro ponto de encontro dessa galera foi o primeiro Autorama da cidade. Era um quadrilátero que cercava o Teatro Municipal, englobando as ruas Barão de Itapetinga, 24 de Maio, São João e 7 de Abril. Durante a noite, a galera ficava andando por lá, enquanto as gays privilegiadas ficavam passando de carro para escolher os eleitos, na paquera, surgindo paqueras, transas, casais e muito mais!
Até essa época, as casas noturnas ainda eram apenas para o público heterossexual, embora existiam gays que frequentassem. Somente no final dos anos 60 que apareceram as primeiras baladas gays, como a Hi-Fi. Ela foi instalada no andar de cima da lendária loja de discos Hi-Fi, no meio da rua Augusta, pro lado Jardins.
Como ainda não era proibido fumar em locais fechados, a Hi-Fi era um cubículo fechado e esfumaçado, com uma geladeira enorme no canto e uma mini pista de dança que tocava Wanderléa, Supremes, James Brown, Ronnie Von, B.J. Thomas, entre outros.
Algumas pessoas diziam que a Hi-Fi só apareciam gays acompanhados, já outras pessoas falavam que o lugar era um ponto de paquera, mas era meio difícil com um locar tão apertado. Perto dali, também na rua Augusta, o bar Intend’s vivenciou muito dessa época, localizado dentro de uma galeria.
O K-7 surge para fazer quantidade nos números de baladas gays em São Paulo, também bem pequena e apertada. O K-7 vivia sendo alvo de blitz da polícia, até uma última a polícia chegou a levar todo mundo para a cadeira!
O casal Fernando Simões e Elisa Mascaro, que também comandavam restaurantes chiques, eram os proprietários da K-7. Em 1971, o casal resolveu transformar o restaurante Medieval numa balada gay. Ele ficava na primeira quadra da Rua Augusta, sentido centro (do lado do Center 3). Lá nascia o primeiro palácio LGBT de São Paulo.
ANOS 70: A DÉCADA DAS GAY PURPURINOSA
O Medieval, agora balada gay, estourou os anos 70, durando até 1984, quando fechou suas portas. Por dentro, todo decorado no estilo dos castelos medievais. Mesmo sendo um lugar chique e caro, com pouca acessibilidade para as pessoas com menos recursos, era requisitado por todos!
Os lendários shows de travestis e as drag queens, que eram chamados transformistas na época, atraíam todos os públicos. Gays, ricos, famosos e colunáveis hetero ou homos como Eike Maravilha, Dercy Gonçalves, Clodovil, Dener, Chiquinho Scarpa, Fafá de Belém, Maria Alcina, Ângela Maria, entre outros.
As festas temáticas do Medieval começaram a marcar presença. A principal, Noite de Broadway, acontecia todo ano na data de inauguração da casa, 19 de agosto. Nesse dia, a Augusta ficava interditada. As pessoas chegavam desfilando com fantasias com holofotes na fachada da balada. Teve até uma vez na qual a atriz e vedete Wilza Carla chegou na festa ahazany em cima de um elefante!
Após esse estouro, outras baladas gays começaram a surgir. Uma das concorrentes era a Nostro Mondo, que abriu em 1971 pela travesti Condessa Mônica. A Nostro Mondo era uma versão mais popular e barata da Medieval. Ela ficava na esquina da Paulista com a Consolação, e ficou em pé por 42 anos, fechando em 2013.
Sua época de auge foram as décadas de 70 e 80. Vários gays debutaram lá, assistindo os shows de travestis e Condessa, que de dia era Clóvis, oficial de justiça, mas de noite se transformava em Mônica, a poderosa da balada. O mais incrível ainda é que a Nostro Mondo foi a primeira balada a fazer matinês gays nos domingos para menores de idade!
A HS tornou-se passagem obrigatória inclusive para celebridades gringas, como Freddie Mercury, que roubou a cena ao tirar a roupa e ficar de sunga em plena pista. A casa foi um grande point gay, resistindo até 1992.
A transformista Miss Blá, que também trabalhava no medieval, era uma das estrelas do Nostro. Até hoje ela é cultuada, com quase 80 anos de idade! Os anos 90 foram marcados pela Blá, que marcou época no Nostro, encamando Hebe Camargo, que recebia celebridades como Regina Duarte, Bruna Lombardi e Raul Cortez em seu sofá.
Em 1978, nascia a Homo Sapiens, outra famosa balada gay, na Rua Marquês de Itu, centro da cidade. Com os mesmos shows das outras baladas, inovou trazendo novas atrações: strip-tease de homens, concurso de melhor corpo masculino, pocket-peças de teatro e shows de humor.
A HS acabou virando uma das melhores baladas da cidade, onde até celebridades gringas passaram por lá, como Freddie Mercury! E o cara não perdeu a chance, ainda roubou a cena de todo mundo ao tirar a roupa e ficar de sunga no meio da pista!
Vários outros lugares como 266 West Bar, Man’s Country, o famoso, boêmio e perigoso Val Improviso começaram a invadir a região. Até mesmo o Chopp Escuro que existe até hoje marcou aquela época, sendo um eterno rebuto gay que fica aberto a noite toda. Outro bar que continua até hoje é o Caneca de Prata.
KD AS MINA?
As sapatonas, fanchonas, ladies, entendidas, machonas, caminhoneiras e sáficas como eram chamadas na época, tinham seu grande point o famosos Ferro’s Bar, no Viaduto Martinho Prado. Ele era uma mistura de bar, restaurante e pizzaria bem popular. Artistas, intelectuais e lésbicas sempre frequentavam o bar. Lá tinha várias tribos de mulheres, as de carro, as de moto, mas militantes esquerdistas, as feministas e estudantes da USP
Para a galera que tinha mais grana e era fina, o melhor lugar era o Moustache Bar, que ficava atrás do Cemitério da Consolação. Mulheres chiques e glamorosas, ricas ou não, frequentavam o lugar, algumas usando terno, gravata, chapéu e fumando charuto. Continuando na mesma década, existiu o Dinossaurus. Uma balada que só mulheres frequentavam.
PARAISO DOS ANOS 80
Chegaram os anos 80 e com eles outros points para as mulheres. Shock House era um deles, com shows de artistas como Ângela RoRo.
Foi no Feitiço’s na Vila Olímpia que surgiram as primeiras mulheres cantando e tocando violão. Outro point dos anos 80 foi o Bug House, na Baixa Augusta. O bar Pride marcou os anos 90 feminino, na Alameda Itu, com sua decoração como um navio de marinheiras.
Novas baladas gays abrindo para todos os lados como Colorido, na Faria Lima; Mistura Fina, no centro, sendo considerada a maior casa gay do Brasil; Village Station Cabaret, no Bexiga, servia jantares maravilhosos, café da manhã no final da balada, tinha até cine pornô e muito mais; Malîcia, nos Jardins, entre outros, fizeram dos anos 80 o paraíso.
Os espaços de rock que também marcaram os anos 80, eram totalmente democráticos, onde todo mundo ia, heteros, gays, artistas, celebridades, roqueiros, góticos e punks, tudo junto e misturado. O principal bar foi o Madame Satã, aberto em 83, duranto até 92, passando por várias fases e nomes diferentes. Recentemente ele voltou de novo, mas agora se chama Madame. Galera como Rita Lee, Cazuza e Supla marcaram presença nesses lugares
O grande olimpo, a Corintho, localizada em Moema, inaugurou em 1985, pela super-empresária Elisa Mascaro, a mesma dona do Medieval. Dessa vez, viúva, comandou com mão de ferro o Corintho, fazendo ele crescer mais do que o Medieval.
A balada foi até cenário do filme Anjos da Noite (1987, de Wilson Barros), que mostra shows de travestis famosas como Margot Minnelli. Foi nessa década também que aconteceu o terremodo provocado pela AIDS.
Lá era o pico das festas lendárias de carnaval, réveillon e à fantasia. Havia multidões na porta e pegação nas ruas próximas da balada. O irônico é que hoja o local é uma igreja evangélica.
ANOS 90 – COMEÇO DO ELETRÔNICO
No final dos anos 80, houve uma decadência das baladas gays, e ao mesmo tempo surgia sorrateiramente outro movimento, que se iniciou no porão de uma galeria na Augusta, pro lado Jardins, a Nation.
Aberta em 88 e fechada em 92, ela foi considerada a primeira casa clubber da noite gay de São Paulo, nascendo o que seria os fundamentos do movimento clubber, inspirado no club kidz de Nova York. Agora em 2017, a Nation ressuscita e é reaberta no mesmo lugar de antes!! Bora conferir?
Logo outras baladas começaram a surgir, como Clube Massivo, na Alameda Itu e Bebete Indarte. O Massivo tornou pop o que a Nation tinha feito undergroun. Até a MTV Brasil fez uma matéria sobre ela.
O Massivo trouxe o espírito dos anos 70, a moda disco e os hits de volta. Não só os gays lotavam as casas, mas astros globais, colunáveis e celebridades disputavam para ver quem conseguia dançar nas gaiolas penduradas acima da pequena pista.
Novas casas ao estilo Clubber foram nascendo como AZE 70, Latino e Lôca. Mas a lendária da cidade foi o Hell’s Club, que agitou o Columbia, na Rua Estados Unidos, entre 94 e 95. A festa abria as 5 da manhã do domingo e fechava ao meio-dia.
Na metade dos anos 90, a noite gay se divide entre 2 grupos: o clubber, com música eletrônica e Techno, e o gay básico, que frequentavam baladas estilo anos 80.
O primeiro grupo, que não era tão afetado, iam para lugares como a Sound Factory, onde surgiam as raves e megaraves. Na segunda metade dos anos 90, as baladas de música eletrônica migraram para casas como Florestta, Lov.E e Stereo, que foi rebatizada de D-Edge, sim, essa mesma que você está pensando)
Nos anos 90 havia um contexto social onde cada vez mais gente, incluindo famosos, se assumia como gays, lésbicas ou bissexuais. Começou a popularizar também as Drag Queens, que no começo eram hostesses, promoters ou humoristas, se tornando grandes ícones da cultura gay na década, e até apareciam na TV, novelas, casamentos e etc.
Começaram a existir jornais, revistas e guias dedicados ao público LGBT, que antes era GLS, acelerando o consumo e a visibilidade deles. Revistas como Sui Generis e G Magazine foram as principais.
Dois eventos importantes coroaram esse cenário nessa época, o Mercado Mundo Mix e o Festival Mix Brasil de Diversidade Sexual. No finalzinho dos anos 90, surgiu a Parada do Orgulho Gay, que alavancou mais a cena, fazendo o evento crescer mais e mais a cada ano.
Outros fatores que ajudaram a alavancar tudo isso, foram os celulares e a internet, transformando radicalmente a vida noturna, as baladas, a cena, moda, comunicação, sexo, amor, tudo!! Mas essa história nós já estamos vivendo! Se joga vinhada!